Sampario traz a história de “Torto Arado” para o Carnaval Virtual 2024

Nome da Escola:Grêmio Recreativo Escola de Samba Virtual Sampario
Data de Fundação:26/01/2013
Cidade/Estado:São Paulo / São Paulo
Símbolo da Escola:Águia e Pandeiro
Cores da Escola:Azul e Branco
Nome do Presidente:Luiz Henrique da Silva Pinto
Nome do Carnavalesco:Wendel Henrique
Intérprete:A definir
Data de Nascimento do Intérprete:2024-04-26
Outros Integrantes:Vinicius Marques – Vice Presidente
Fernando Constâncio – Diretor de Carnaval
Gleison Maurício – Diretor de Carnaval
Victor Alves – Direção de Carnaval
Izaias Júnior – Direção artística
Enredo:“Torto arado – A terra, a luta e nós“
Autor do Enredo:Wendel Henrique

Setor 1 – Uma história de mim e de minha irmã

Essa é uma história que fala de mim e da minha irmã. Uma história de tempos imemoriais e, paradoxalmente, contemporânea. É no solo ressecado da Fazenda de Água Negra, onde se planta mandioca, feijão, milho, buriti e dendê, que passado e presente se cruzam, onde tudo costuma ser como sempre foi, geração após geração.

É sobre esse mesmo solo, onde pisam nossos pais e onde pisaram nossos avós, e os avós de nossos avós, onde meu destino e o da minha irmã foram eternamente selados, pelo fio de corte de uma velha faca esquecida na mala de Donana. É sob a perspectiva desse território que se passa nossa história.

Sempre que penso em tudo que passamos, sinto o calor impiedoso do sol do interior queimar minha pele enquanto minhas mãos calejadas afundam na terra seca. Esta terra é mais do que um simples solo sob nossos pés; é nossa mãe, nossa fonte de vida e nossa prisão. Cresci observando meus pais, Zeca e Salustiana, trabalhando dia após dia, fazendo do trabalho praticamente sua única forma de estarem no mundo.

Setor 2 – É dia de feira

A cada nascer do sol, meu pai e minha mãe se levantavam para trabalhar, ou, muitas vezes, já estavam despertos. Com o passar do tempo, conforme fomos crescendo, eu e minhas irmãs também passamos a ajudar no cultivo e cuidados com a terra. Sempre foi assim, quando crescidos, os filhos passavam a trabalhar junto de seus pais e outros moradores da região.

Mas, mesmo que haja um caminho natural para as coisas, essa terra não é nossa. Não no sentido formal da coisa. Apesar de muitos terem nascido, crescido e morrido por aqui, nossos esforços sempre foram roubados pela voracidade dos poderosos, que nos exploraram sem piedade. Cada grão colhido por aqui é manchado pela injustiça.

Houveram momentos de muita dificuldade. A seca e a falta de alimento sempre atravessaram de forma impiedosa a vida de todos em Água Negra. Nesses momentos, dia após dia, aumentavam as notícias de crianças que não aguentavam a falta de alimento. Houve um período em especial onde as coisas foram mais difíceis. Aquele foi o último ano que vi uma plantação extensa de arroz naquelas terras. O arroz, dependente de água, foi o primeiro a secar com a estiagem. Depois secaram a cana, as vagens de feijão, os umbuzeiros, os pés de tomates, quiabo e abóbora1.

Apesar dos longos períodos de estiagem, continuávamos plantando e colhendo buriti e dendê, para levar para a feira da cidade às segundas-feiras. Depois de colhidos, guardávamos os frutos em tonéis de água, para que fosse possível retirar a casca e aproveitar a polpa. Pela manhã, levávamos aquelas massas em sacos de linhagem na cabeça, para comercializar com as senhoras que fazem doce de buriti e sucos para vender.

Setor 3 – Salve o jarê, a encantaria e os encantados

Para além da relação constante com o trabalho, nossa vida também foi atravessada pelo misticismo e pela encantaria do Jarê. Era meu pai, que quando não estava na roça com sua sacola e enxada, estava tratando de algum doente, do corpo ou da alma. Para o povo de Água negra, meu pai, Zeca Chapéu grande, não era apenas um compadre, era pai espiritual de toda a gente2.

Desde criança, tanto eu quanto minha irmã, fomos envolvidas pela aura sagrada que paira sobre Água Negra, pelo toque dos atabaques, pelos adornos de encantada, pelas festas e brincadeiras no terreiro. Cresci vendo meu pai, e também minha mãe, tratando de todo tipo de gente, mas na maioria dos casos de pessoas desconectadas de seu eu, desconhecidas de parentes e de si. Eram pessoas com encosto ruim, conhecidos e também desconhecidos de todos3.

Quase todas as famílias da região depositavam suas esperanças nos poderes de Zeca Chapéu Grande, curador de jarê, que vivia para restituir a saúde do corpo e do espírito aos que necessitavam. Desde cedo, havíamos precisado conviver com essa face mágica de nosso pai. Era um pai igual aos outros pais que conhecíamos, mas que tinha sua paternidade ampliada aos aflitos, doentes, necessitados de remédios que não havia nos hospitais, e da sabedoria que não havia nos médicos ausentes daquela terra4 (p.33)

Setor 4 – Poder e justiça à nós, o povo da terra

Cada capítulo de nossa jornada foi marcado por uma incessante luta. Desde pequena, aprendi com meus pais que a vida era assim, tinha de ser assim. Lutamos para sobreviver, para comer e trabalhar. Na Fazenda Água Negra, a injustiça sempre foi como uma sombra que pairava sobre cada um de nós. Os patrões exploravam nosso trabalho, pagando-nos migalhas enquanto enchem seus bolsos com nossos suores.

Foi somente quando ficamos mais moças, eu e minha irmã, que nos damos conta de nossa realidade. Lembro de ouvir de minha mãe que os patrões somente permitiam construir casas de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena para ter abóbora, feijão, quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os mais velhos. Seria gente de estima, conhecida, afilhados do fazendeiro. Dinheiro não tinha, mas tinha comida no prato5.

Durante sua vida, meu pai, Zeca Chapéu Grande, além de guia espiritual, também desempenha um grande papel enquanto líder de toda a gente que mora na fazenda. Com o auxílio de seus encantados, sempre busca manter a ordem e estabelecer o bom diálogo com os donos da propriedade. Porém, com a infelicidade de sua repentina morte e com a iminência da venda da propriedade, os moradores passam a se ver desamparados e assombrados pelo fantasma do despejo.

Qualquer um que tomasse a liderança e tentasse nos organizar em prol de nossos direitos, virava desafeto do dono da fazenda. Neste tempo, parecia que todas as nossas tentativas de garantir a nossa permanência naquele território que conhecemos desde sempre, acabavam sendo frustradas, seja pela burocracia dos homens da cidade, ou pela truculência do dono da terra e de seus enviados, que nos ameaçavam e transformavam em rio de sangue o chão por onde passavam. Nossa luta era por direito e justiça, enquanto legítimos habitantes daquela terra.

Setor 5 – Algum final feliz ou deveras menos melancólico

Em certo sentido, a terra aqui na região da fazenda de Água Negra sempre foi nossa. Desde muito pequenas, ouvimos falar que por aqui vieram morar muitos negros libertos ou indígenas fugidos, e que foi deles que herdamos os conhecimentos sobre os encantados. O próprio Zeca Chapéu Grande, meu pai, nasceu apenas trinta anos após a libertação dos negros escravizados, e muitas das famílias que moram por aqui ocupam essa região desde o tempo que seus ancestrais vieram para cá.

Essa terra sempre teve feitiços capazes de roubar a sanidade de qualquer homem, despertando a mais cega cobiça. Dia após dia, os homens se enfiavam na terra, sujando suas mãos de sangue, e às vezes, meio que sem entender tamanha cobiça, até nos perguntávamos: “Mas o que fazem com os minérios e riquezas que tiram da terra? Por acaso, eles comem?6

Foi com o passar do tempo, e depois de tanto lutar contra os jagunços e investidas do dono da fazenda, que entendemos que o preço de nossa libertação só poderia ser pago com sangue, mas dessa vez com o sangue daqueles que usurparam nossos direitos e, com crueldade, nos mantinham presos naquela relação de servidão. Diziam que antigamente, os primeiros habitantes dessa terra tinham a vingança como uma legítima forma de resolver as coisas, pagando na mesma moeda. Nesse contexto, a vingança aparecia como, antes de qualquer coisa, nossa relação com o passado, e que nos dava a única possibilidade de futuro.

No final, foi feito como tinha de ser. Não demorou a correr a notícia, mais uma vez foi manchado de sangue o chão da fazenda de Água Negra. Sangue marca a história dessa terra e a nossa própria história. Mesmo que a morte de um de nossos opressores não seja o final de nossa história, representa o início de uma longa jornada, em busca da libertação, não só das famílias de Água Negra, mas de todos aqueles oprimidos pela ganância e pela cobiça.

E assim, enquanto o sol se põe no horizonte, olhamos para o futuro, eu e minha irmã, com esperança renovada. Nossa luta não é, e nunca foi, apenas por nós mesmas, mas por nossos filhos, pelas gerações futuras que merecem uma vida digna e livre da opressão que conhecemos tão bem. Sonhamos com um lugar onde todos possam desfrutar dos frutos de seu trabalho, onde a justiça seja mais do que uma palavra vazia proferida pelos lábios dos poderosos.

Referências

VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado São Paulo: Todavia

1 VIEIRA, 2019, p.67

2 VIEIRA, 2019, p.40

3 VIEIRA, 2019, p.33

4 VIEIRA, 2019, p.33

5 VIEIRA, 2019, p.41

6 ALBERT; KOPENAWA, 2022

Regras do Concurso:Ala de compositores da escola fará a composição
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