Após levar o maior São João do mundo para a avenida virtual em 2021, a Arrebatados Por Momo traz um enredo forte e revoltante, em que o brutal assassinato do pequeno indígena Kaingang é o fio condutor da história que será contada pela escola.
A escola fundada em 13 de Setembro de 2015 tem o Elidio Fernandes Junior como presidente e integrante da comissão de carnaval junto com o Guilherme de Carvalho e o Matheus Alves. A intérprete é a Beth Ramôa, já identificadíssima com a escola.
Confira a entrevista cedida pelo presidente, Elídio Fernandes:
1- Como conheceu a LIESV e por que a escolheu?
Sinceramente nem me lembro bem como conheci a LIESV… Penso que uma amiga falou de desfile virtual e fui assistir. Gostei! Me juntei com um grupo de amigos para fundar o GRESV Arrebatados por Momo. Naquela é poca não conseguimos desfilar. Fato que só aconteceu recentemente e estamos indo para nosso terceiro desfile.em 2022.
2- Qual a história da sua escola, como foi fundada, qual o motivo, quais as cores, símbolos nome?
Arrebatados nasceu de uma maluquice minha. Mas como sempre tento me cercar de amigos, desta vez não foi diferente: um grupo de foliões assinou a ata de fundação. Tinha Imperiano, Portelense, Insulano e Mangueirense. Desse Dna vieram as cores e símbolos da nossa escola. Tricolor (verde, azul e branco) e com uma águia, coroa imperial, coroa de louros e sambistas como símbolo, a Arrebatados representa paixões. Sobre o nome… Bem, somos devotos de Momo… A expressão “Arrebatados” foi tirada da cartola para ironizar os preconceituosos pela fé…. Por isso GRESV Arrebatados por Momo.
3- Qual será o enredo da sua escola e como ele será contado na passarela virtual (quantas alas, alegorias e demais elementos)?
Para 2022 traremos om enredo indígena: KAINGANG. Ter um tema indígena foi ideia dos nossos parceiros e carnavalescos Guilherme de Carvalho e Mateus Alves. Na pesquisa nos deparamos com uma notícia do assassinato de um pequeno curumim nós braços de sua mãe. Mas queríamos algo mais mítico. Então tomamos a notícia como ponto de partida para por meio de uma narrativa mítica contar nosso enredo que, resumidamente, falará do ritual dos mortos, da união dos povos, da redenção do curumim-anjo e da valorização da cultura indígena. Quanto ã parte visual, isso ainda não está fechado.
4- Como a equipe da sua escola foi montada e quem faz parte dela?
Temos o orgulho de manter a mesma equipe base de trabalho desde 2020: Mateus Alves e Guilherme de Carvalho, dois jovens brilhantes, comprometidos, criativos e talentosos dão vida às ideias com seus desenhos. Eles também me ajudam no desenvolvimento do enredo, cujo texto é elaborado por mim… E nosso carro de som é capitaneado pela linda e melódica voz de nossa Beth Ramoa… Mas estamos construindo novas parcerias, que ainda não posso adiantar…
5- E o samba enredo, vai fazer eliminatórias de samba ou vai encomendar? Se for eliminatórias, quais as regras da disputa, pra onde os compositores devem mandar os sambas e etc
Nosso concurso de samba está em curso. Já recebemos algumas obras de grande qualidade. mas queremos ainda mais…. Estamos abertos para receber obras até o dia 13/03… E então partiremos para a escolha. Compositores podem me enviar pelo whatsapp (21 973936882) seus sambas, com duas passadas e letra identificada. Podem participar!…venham fazer parte desta história…
6- O que você e sua escola esperam do Carnaval Virtual 2022, tanto de vocês quanto das coirmãs?
Para 2022 esperamos um desfile de alto padrão, com samba, alegorias e fantasias criativas e de fácil leitura. Esperamos ficar felizes com nosso desfile e provocar reflexão crítica no público em geral. Quanto à classificação, trabalhamos para subir pro especial, mas mais que isso, trabalhamos para ser felizes sem considerar egos… E que as coirmãs, assim como nós, consigam colocar seu projeto para desfilar na íntegra. Isso é o que vai garantir a qualidade do espetáculo. O resto é o resto…
Confira abaixo a logo e a sinopse do enredo da Arrebatados Por Momo para o Carnaval Virtual 2022:
“KAINGANG”
INTRODUÇÃO – A notícia
05/01/2016 – Imbituba, SC: Enquanto o mundo parava para festejar a entrada do novo ano, na cidade de Imbituba, litoral catarinense, o pequeno Kaingang, curumim de dois anos de idade, era brutalmente assassinado no colo de sua mãe.
Segundo o Conselho Indigenista Missionário, Regional Sul, o crime ocorreu na rodoviária de Imbituba, enquanto o pequeno estava sendo amamentado pela mãe. Um homem se aproximou, acariciou seu rosto e, com um estilete, o degolou. Enquanto a mãe e o pai, desesperados, tentavam socorrer a criança, o assassino seguiu caminhando pela rodoviária até desaparecer.
“Ele faleceu em um local que a família Kaingang imaginava ser seguro. As rodoviárias são espaços frequentemente escolhidos para descansar, quando estes se deslocam das aldeias para buscar locais de comercialização de seus produtos”, explica a nota do CIMI. A família do Curumim é originária da Aldeia Kondá, localizada no município de Chapecó, Oeste de Santa Catarina. O corpo do menino foi enterrado às 16 horas de sexta-feira (1º), no cemitério da Aldeia Condá, em Chapecó. A tristeza dividia espaço com a indignação e a pergunta: por que tamanha crueldade?
Os indígenas só podem existir no Brasil como gravura. Apreciados como ilustração de um passado superado, os primeiros habitantes dessa terra, com sua nudez e seus cocares, uma coisa bonita para se pendurar em algumas paredes ou estampar aqueles livros que decoram mesas de centro. Os indígenas têm lugar se estiverem empalhados, ainda que em quadros. No presente, sua persistência em existir é considerada inconveniente, de mau gosto. Há vários projetos tramitando no Congresso para escancarar suas terras para a exploração e o “progresso”. Há muitos territórios indígenas devidamente reconhecidos que o governo não homologa porque neles quer construir grandes obras ou porque teme ferir os interesses do agronegócio. Há uma Fundação Nacional do Índio (Funai) em progressivo desmonte, tão fragilizada que com frequência se revela também indecente. No passado, os índios são. No presente, não podem ser.
Inspiração:
Um Índio – Caetano Veloso
Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito
Virá …
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio
O ENREDO:
KAINGANG
Por Elidio Fernandes Junior
Abandono, sofrimento e caos…
O jovem Kaingang nem chegou a vivenciar suas experiências uma vez que teve os ritos de sua vida interrompidos de forma covarde, ainda nos braços de sua mãe. Silêncio na aldeia onde seu umbigo havia sido enterrado. O pranto da dor inundou a aldeia…
Antes de iniciar o Kikikoi, um ancião reuniu os jovens… saber sua história… toda a identidade cultural da tribo foi apresentada pelo Xamã Kuiã para os curumins da aldeia: o princípio de tudo em uma grande inundação que devorou toda a terra; Kayru e Kamé , dois grandes criadores do mundo, representam a dualidade do universo: o sol e a lua, o pinheiro e o cedro, o lagarto e o macaco – um mundo em equilíbrio dual. Toda a luta para sobreviver às águas: as saracuras e os patos salvadores que construíram um açude, por onde se salvaram os Kaingangues. Com medo, muitos não desceram das árvores, transformando-se em macacos… Depois que as águas secaram, se estabeleceram nas imediações de Krinjijimbé. Quando saíram da serra fizeram os cestos e cabaças. Na noite posterior à saída da serra, atearam fogo e com a cinza e carvão fizeram tigres (ming) que saíram rugindo. Como não tinham mais carvão para pintar, só com a cinza fizeram as antas (oyoro). Estavam fazendo outro animal; faltava ainda, a este, os dentes, língua e algumas unhas, quando principiou a amanhecer. E, como de dia não tinha poder para fazê-lo, pôs-lhe às pressas uma varinha fina na boca e disse-lhe: − Você, como não tem dente, viva comendo formiga. Eis o motivo por que o tamanduá (ioty), é um animal inacabado e imperfeito. Na noite seguinte continuou e fez muitos animais, e entre eles as abelhas boas. Ao tempo que Kayu fazia esses animais, Kamé fazia outros para os combater: fez os leopardos (ming-koxon), as cobras venenosas e as vespas. E assim o universo kaingang foi-se reconstruindo. Aos poucos….
Apontando para o fogo, kuiã continuou…
Só Min-ârân tinha fogo; não queria dar aos Kaingang. Estes comiam a carne de caça crua ou seca ao sol. Desejavam ter fogo, mas não sabiam produzi-lo. Fyietô tô transformou-se em filho de gralha branca (xakxó), e foi boiando a tona d’água até onde estavam se banhando a mulher e a filha de Min-ârân. Essa, quando o viu, pediu à mãe que o pegasse. Levaram-no à casa e, como estivesse molhado, para [que] se enxugasse, puseram-no sobre as achas de lenha que estavam no fogo. Fyietô conseguiu separar um graveto com fogo, fugiu com ele no bico. Subiu em uma palmeira, tirou desta um ramo seco, acendeu-o no graveto e foi arrastando o ramo por um campo grande, que se incendiou. O campo queimou por muitos dias; todas as gentes guardavam fogo e principiaram a assar a carne nele. Quando acontece de apagar o fogo, podem produzir friccionando uma vareta de madeira dura sobre uma pequena cova feita na extremidade inferior de um ramo seco de palmeira. E assim dominaram o fogo…
E o Xamã encerra sua narrativa apontando para as fogueiras…
Os xamãs – Kuiã – estão iniciando o ritual dos mortos, o kikikoi na praça da dança, onde três fogueiras estão acesas. O primeiro fogo antecede o corte da araucária, que servirá de cocho para o Kiki. O segundo fogo antecede a preparação do konkéi. E o terceiro, o mais importante, unia as gentes pintadas para o ritual dos mortos.
São entoados cantos e rezas… As mulheres – péin –, para proteger os participantes dos espíritos dos mortos, pintavam os rostos de todos com tinta de carvão. Turus e Xik-Xi são tocados enquanto cantam e rezam pelos mortos. O Kiki é servido para todos. Objetos do curumim Kaingang são trazidos para o ritual de purificação e entrega de seu espírito aos antepassados.
Foi então que um grande trovão ressoou: era o grande criador dos Céus e da Terra, Deus Tupã se fez presente e trouxe consigo, irmanadas, as mais diversas nações indígenas em suas divindades.
Com olhos luminosos, saindo das profundezas dos rios, chega Boiúna, a cobra grande criadora dos rios que, com sua imensidão, vai envolvendo todo o kikikoi e seus participantes, trazendo toda a força amazônica das nações que protegia. Anhangá, Deus das regiões infernais, um espírito andarilho que pode tomar a forma de vários animais da selva, se transfigura em Gavião Carijó e sobrevoa o ritual imponente e trouxe seu reino animal para o ritual. Eram sapinhos de barriga vermelha, papagaios de peito roxo, perdizes, onças pintadas, corujas buraqueiras… Yorixiriamori, árvore cantante que a todos encantava, com seu som atraiu Caiporas – criaturas entre homens e animais, que protegem as florestas, com a maestria de imitar qualquer som. Kianumaka-Manã, Deusa da liberdade que possui um espírito-livre e que carrega consigo a força das onças pintadas chegou para fortalecer toda a tribo. Voando chega também Acauã, a fada pássaro que tudo vê… Todos juntos atraídos pelo Senhor do Trovão, vieram participar desde momento mítico.
Foi quando, ao longe, foi-se aproximando o som de uma doce flauta. À medida que todos se uniam, índios, fauna, flora, forças da natureza e espíritos da floresta percebiam a grande necessidade de se irmanarem. Era Akuanduba que tocava sua flauta para trazer nova ordem ao mundo.
E, neste momento, Jaci, Deusa-lua-mulher, com seu céu cercado de estrelas-curumins que perderam seu corpo físico e foram preservados em luz, cor, brilho e beleza permite que algo aconteça: uma começa a descer sob a forma de uma estrela colorida, brilhante… Uma estrela que se aproxima numa velocidade estonteante… E pousa no coração do ritual xamânico.
Num claro instante, a estrela se transfigura num curumim-anjo, mártir de todos os povos e nações indígenas, exemplo de um presente-futuro que não se quer mais. Toda a tribo se levanta e entoa cantos de paz…
Com os primeiros raios do Sol-Deus-Guaraci, se percebem a luz de um novo dia, sabedores de si, impávidos, tranquilos, infalíveis e apaixonantes.
E a dor inicial se transforma em energia vital… Sobre a força curumim: Lutar pela vida é ser Kaingang!
Referências:
O brutal assassinato de Vítor, um menino Kaingang de apenas 2 anos. In: https://franciscanos.org.br/noticias/o-brutal-assassinato-de-vitor-um-menino-kaingang-de-apenas-2-anos.html#gsc.tab=0 (Acesso 12/11/2021)
VELOSO, Caetano. “Um índio” In: Bicho. Philips, 1977.
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kaingang#:~:text=O%20primeiro%20registro%20da%20mitologia,do%20interior%20da%20serra%20Crinjijimb%C3%A9. (Acesso: 01/12/2021)
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quais-sao-os-principais-deuses-da-mitologia-indigena-brasileira/ (Acesso: 15/12/2021) https://www.suapesquisa.com/fauna_flora/regiao_sul_brasil.htm (Acesso: 15/12/2021)
Autor do enredo: Elidio Fernandes Junior