Olha a Beija-flor aí gente! Com nome que homenageia a escola nilopolitana, a G.R.E.S.V. Beija-Flor estreia no carnaval virtual apresentando o enredo “Olorum Salve o Rei! A Cinderela Negra vai à Coroação de Charles III do Reino Unido”, que foi idealizado e será desenvolvido pelo carnavalesco Paulo Batista.
Confira a entrevista concedida pelo presidente Paulo Batista:
1- Como conheceu a LIESV e por que a escolheu?
Conheci alguns anos atrás enquanto pesquisava sobre carnaval na internet. Escolhi a LIESV por se tratar de associação pioneira e que se consolidou ao longo de seus 20 anos de história no Carnaval Virtual.
2- Qual a história da sua escola, como e onde foi fundada, qual o motivo, quais as cores, símbolo e nome?
O G.R.E.S.V. Beija-Flor é um projeto idealizado por mim, Paulo Batista, em 2022, como um suporte artístico/carnavalesco próprio. A escolha do nome, das cores, dos símbolos e da data de fundação da agremiação é uma homenagem direta ao G.R.E.S. Beija-Flor de Nilópolis, que desde criança é minha escola de coração. Nesse sentido, o projeto tem como premissa sempre salvaguardar a identidade, a cultura e a memória nilopolitana em seus meios de expressão visuais, musicais, literários e temáticos. Sou paranaense e moro na cidade de Ponta Grossa, mas a intenção da escola não é ter uma cidade sede como sua representação geográfica, mas sim acolher a todos em uma comunidade virtual e sem território definido.
3- Qual será o enredo da sua escola e como ele será contado na passarela virtual (quantas alas, alegorias e demais elementos)?
A agremiação fará sua estreia apresentando o enredo “Olorum Salve o Rei! A Cinderela Negra vai à Coroação de Charles III do Reino Unido. O mote da narrativa é a coroação do novo monarca inglês, que retornará ao Brasil para reencontrar Pinah, a passista com quem sambou em 1978, quando esteve no Rio de Janeiro. O rei convidará Pinah para a cerimônia e, em Londres, ocorrerá o desfecho da história. A princípio, a escola levará à Passarela Virtual 04 alegorias e 18 alas. Avalia-se a utilização de elemento cenográfico para Comissão de Frente e tripés durante o cortejo.
4- Como a equipe da sua escola foi montada e quem faz parte dela?
Por enquanto, a equipe conta apenas com Presidente e Carnavalesco, e eu mesmo estou atuando em ambas as funções.
5- E o samba enredo, vai fazer eliminatórias de samba ou vai encomendar? Se for eliminatórias, quais as regras da disputa, pra onde os compositores devem mandar os sambas e etc?
Samba encomendado ao compositor Ney Baiano.
6 – O que você e sua escola esperam do Carnaval Virtual 2023, tanto de vocês quanto das coirmãs?
Espero desenvolver meus talentos e habilidades ao longo desse pré-carnaval, contribuir para o nível do espetáculo junto às coirmãs e encontrar um ambiente criativo, íntegro e democrático no Carnaval Virtual da LIESV.
Confira abaixo a sinopse do enredo da Beija-Flor para o Carnaval Virtual 2023:
Sinopse
Charles Volta aos Trópicos
Era terça-feira de Carnaval no Rio de Janeiro. O sol já dava indícios de que tão logo se despediria e não mais iluminaria os diversos paetês salpicados no grupo de foliões que se concentrava diante dos portões do Palácio da Cidade, no bairro de Botafogo. Eram personagens da Commedia Dell’Arte: pierrôs, arlequins e colombinas. Brincavam radiantes, para lá e para cá, compondo um maciço luminoso que se deslocava em bloco pela rua São Clemente. Saiam todos os anos da mesma rua, partindo sempre do palacete. Escolheram Botafogo pela arquitetura histórica dos edifícios do bairro, que ambientava o cenário ideal para o devaneio alimentado na inspiração renascentista das figuras carnavalescas que gostavam de representar.
Dos limites palacianos, o concierge observava o vai e vem do bloco na rua e permanecia atento à corrida contra o tempo que afligia os funcionários do palácio. Estava guardado pela balaustrada da escadaria e abrigado à sombra do frontão que delimitava a simetria axial da edificação, que era erguida sob robustas colunas de fuste liso encimadas por capitéis com ornatos de acanto. O chafariz instalado no canteiro central refletia a imagem dos transeuntes apressados cruzando as alamedas do jardim. Eram empregados carregando opulentos ornamentos carnavalescos de cor avermelhada, arrematados por finos detalhes dourados. Estavam aflitos pois precisavam terminar de aprontar, antes que o dia enfim se despedisse da luz solar, o serviço de decoração do Bal Masqué oferecido pelo palácio ainda naquela noite. Os ornamentos contrastavam com a tonalidade pastel da edificação que, mesmo desprovida de significativos motivos arquitetônicos, era de grande imponência na paisagem do bairro.
Do lado de fora, um folião vestido de pierrô, tristonho por ter perdido sua colombina para um arlequim, vagava pela calçada. Até que, surpreso, gritou indagando em direção ao jardim do palácio: “para quem é a festa?”. Um dos funcionários, apoiando-se no pórtico que instalava próximo à rua e bambeando as pernas na velha escada de madeira que subia, respondeu: “para o rei!”. E seguiu fixando a escultura de um beija-flor sobre o pórtico – era o distintivo da anfitriã da noite. O folião, ainda sem entender de quem se tratava, questionou: “que rei?”. O funcionário, após posicionar as esculturas de um leão e de um unicórnio, informou: “o novo rei do Reino Unido, o leão e o unicórnio são insígnias de seu brasão”. O folião hesitou: “e o que é que ele vem fazer aqui?”. O funcionário tratou logo de responder: “vem encontrar Pinah, a Cinderela Negra”. Curiosidade satisfeita, o triste pierrô partiu junto ao restante do bloco, enquanto o funcionário ficara por arrematar os elementos da porta monumental que decorava.
Convite à Coroação
Ao anoitecer, a profusão de elementos carnavalescos que adornavam a fachada do edifício era realçada pelo clarão cintilante da lua minguante que se erguia no firmamento e banhava de ouro o jardim, revelando a tropicalidade dos canteiros de monstera. Enquanto isso, a governanta passeava ansiosa pelas alamedas. Averiguava se nada estava em desacordo. Impecável! Tudo estava pronto e todos estavam a postos para a chegada do rei. O concierge, ouvindo ao longe o som crescente de uma marcha, percebeu que a cavalaria da comitiva real se aproximava do palácio. Alguns minutos depois, o comboio chegou ao portão principal e as carruagens douradas, que refletiam fortemente a intensa luminescência da lua, atravessaram o pórtico monumental para conduzir o rei ao Bal Masqué.
Em seguida, saltaram arautos vestidos de veludo vermelho e, desfraldando galhardetes, embocaram estridentes clarins para anunciar, com muita pompa, a chegada de Charles e do séquito da realeza inglesa no Palácio da Cidade. O rei, ao desembarcar no porte-cochère, foi recebido por mascarados e tratou logo de interrogar ao concierge: “Where is Pinah?” (Onde está Pinah?). “She is inside!” (Ela está lá dentro!), exclamou o funcionário. Charles então solicitou à governanta que comunicasse Pinah sobre sua chegada e, sentindo em seu rosto o afago suave da brisa que refrescava a cidade do Rio de Janeiro, decidiu esperar por Pinah debaixo do caramanchão construído no canteiro central do jardim, próximo ao chafariz. O pedido foi prontamente atendido. A anfitriã deixou o interior do palácio e partiu para encontrar o rei.
Aproximando-se do caramanchão, Pinah exultava pelo reencontro. Charles, em um gesto típico de alguém que após anos reencontra um velho conhecido, mas atípico para quem segue a rigorosa etiqueta da realeza, correspondeu à exultação de Pinah com um caloroso abraço. A quebra de protocolo do rei fez Pinah acessar as cenas do baile em que outrora se conheceram e ocorrera ali, naquele mesmo jardim. O início nostálgico ditou a tônica do reencontro, e as reminiscências de Pinah lhe trouxeram à memória detalhes da noite em que era uma princesa africana, e Charles, que ainda não reinava, era um príncipe inglês.
Reminiscências de Pinah
Sob o caramanchão, Pinah se deparou com um trio de folionas que dançavam diante da balaustrada do palácio e usavam o mesmo modelo de vestido listrado. Logo, recordou-se daquilo que os mais românticos devaneios juvenis se encarregaram de cristalizar em sua memória, vislumbrando na tríade a presença de Iyá Kalá, Iyá Detá e Iyá Nassô, interpretadas pelas passistas nilopolitanas Aparecida, Jorgina e a própria Pinah, respectivamente. O trio de passistas, que se vestia igualmente de branco e prata, retratava três princesas africanas convidadas para recepcionar Charles, o futuro monarca do Reino Unido, durante sua primeira visita ao Palácio da Cidade, na noite 10 de março de 1978. Naquela ocasião, Aparecida, Jorgina e Pinah, reconhecendo-se como plebeias em meio à nobreza inglesa, fantasiaram: uma delas repetiria o conto de fadas da história de Cinderela e dançaria com o príncipe.
Apesar da brincadeira, sabiam que tal romantismo era exagerado e sequer pressupunham que o feito pudesse se realizar. Então, seguiram para o jardim do palacete, onde ocorreria a recepção ao príncipe. Iyá Kalá, Iyá Detá e Iyá Nassô sambavam e cantavam. Eram como trovadoras acompanhadas por ritmistas da bateria da escola de samba de Nilópolis, e os
versos da obra que cantarolavam descreviam uma versão do itan em que Olorum, o supremo senhor dos céus, ordenou a Obatalá que criasse a Terra. Foi assim que cada uma delas contou a Charles um trecho de como o mundo fora criado segundo a tradição Nagô.
Iyá Kalá iniciou a narrativa elucidando que, no princípio dos tempos, ainda no plano espiritual, Olorum gerara os orixás e ao primogênito Obatalá deu a incumbência de criar o mundo, entregando-lhe a cabaça da criação, que continha o substrato necessário para engendrar tudo que fosse terreno. Antes de partir, Obatalá consultou o oráculo de Orunmilá- Ifá, divindade conselheira de todos os orixás e conhecedora de tudo que transita entre no orum- aiyê. Durante a consulta, Obatalá fora orientado para que, antes de partir com a cabaça da criação, fizesse oferendas a Bará, o orixá mensageiro, que é senhor dos caminhos e por isso intermedia a comunicação entre os céus e a terra. Desse modo, deveria oferendar a Bara um ebó com quatrocentas mil correntes de prata, quatrocentos mil caracóis, cinco galinhas d’angola, cinco pombos brancos e um camaleão. Entretanto, Obatalá desprezou as orientações de Orunmilá e seguiu para o limite entre o aiyê e o orum, fronteira que é guardada por Bará. Este, sentindo-se desafiado, vingou -se. Assim, Obatalá padeceu de grande sede, partindo à procura do líquido que pudesse saciar a secura de seus lábios e, fincando o opaxorô que carregava na estipe de uma palmeira, fez jorrar vinho de palma. Embriagado pelo líquido, perdeu-se no caminho ao aiyê e adormeceu profundamente à sombra de um dendezeiro, fracassando no cumprimento da obrigação que recebera de Olorum.
Iyá Detá, por sua vez, seguiu o relato mítico ressaltando que, tamanha a grandeza de Obatalá, nenhum outro orixá ousou acordá-lo do estado sonolento em que estava. Mas Odudua, sempre atenta a tudo, certificando-se que o sono de Obatalá era agudo, tomou de suas mãos a cabaça da criação e foi até Olorum relatar o ocorrido. Grato pela complacência, Olorum entregou a cabaça a Odudua, delegando ao seu cuidado o ônus de criar o mundo. Odudua fez as oferendas que Bará requisitara e seguiu com sua permissão. Daquilo que oferendou, Odudua tomou as diversas correntes e fez uma só, usando-a para descer ao aiyê. Tendo descido, Odudua percebeu que o universo era tomado por líquido. Do camaleão, a centelha inspiradora do divino, surgiu o fogo que motivou Odudua a criar o mundo. Para que a centelha se espalhasse sobre a imensidão de massa líquida, Odudua despejou a substância que carregava na cabaça. Era terra. Em seguida, soltou as galinhas d’angola sobre o pequeno monte formado sobre a massa líquida. Ao ciscarem, as galinhas espalharam o montículo sobre a superfície amorfa do universo e a substância da cabaça se expandiu, formando a Terra. Depois disso, para criar o ar, Odudua soltou os cinco pombos, que voaram para orientar a direção dos ventos. Por fim, criou a água diluindo o “sangue branco” dos caracóis que levara. Surgiram assim os quatro elementos primordiais do universo: fogo, terra, ar e água. Para demonstrar que a Terra era firme, Odudua apanhou o camaleão e fez com que andasse sobre a crosta terrestre. Tendo a confirmação de que o plano era estanque, Olorum permitiu que todos os orixás descessem do firmamento e viessem habitar a Terra.
Iyá Nassô, apresentando o desfecho do mito, contou ao príncipe que Obatalá, ao despertar do sono em que caíra, percebeu que a cabaça da criação tinha sido levada de suas mãos. Logo, tomou conhecimento da ação de Odudua e partiu irado. Reivindicava a incumbência da criação. De nada adiantou, o mundo já tinha sido criado. Depois, seguiu em direção a Olurum, prestou contas do ocorrido, foi punido com a privação de beber vinho de palma, desculpou-se e foi perdoado. Nesse momento, recebeu outra dádiva de Olorum. Deveria
criar a humanidade para que povoasse a Terra. Encarregado da tarefa, Obatalá desceu ao aiyê e encontrou Odudua. Ele, o princípio masculino. Ela, o princípio feminino. Ele, a água. Ela, a terra. Juntos, o barro. Esqueceram da batalha que travavam, apaixonaram-se e consumaram a união modelando a humanidade em bonecos de barro. Mas, percebendo que os bonecos produzidos por Obatalá e Odudua eram inanimados, Olorum, que do firmamento tudo observava, soprou seu fôlego de vida sobre as narinas dos bonecos, determinando o surgimento da vida e selando o amor entre Obatalá e Odudua.
À medida que dos lábios da passista ecoavam as últimas palavras do itan que acabara de narrar, Iyá Nassô sentia seu corpo menear contra o ar. Estava sambando. Nesse momento, deu-se conta que não sambava junto à Iyá Kalá e Iyá Detá. Sambava com um rapaz. Ele era branco, alto, tinha olhos azuis, vestia smoking e dançava de forma muito peculiar, notadamente demonstrando ser alheio ao ritmo sincopado da batida que contagiava seu corpo. Era o príncipe. A brincadeira que Iyá Nassô fizera horas antes tinha se tornado realidade. No mesmo instante, Pinah retornou do estado de digressão que a tomava e ouviu o ecoar de vozes que entoavam: “Pinah, êêê, Pinah, a Cinderela Negra que ao príncipe encantou no carnaval com o seu esplendor”. Era o trio de folionas que vira minutos antes. Estavam cantando o samba que consagrou o episódio vivido por Pinah na história do carnaval. A Cinderela estava entre elas.
Após recordarem a histórica cena que protagonizaram sambando juntos, Charles e Pinah voltaram a conversar, rindo daquilo que calhou da noite de 1978. Ela achou graça da mãe desesperada com a imprensa que na manhã seguinte bateu à porta de sua casa procurando saber quem era a passista que sambou com o príncipe. Ele brincou com o estardalhaço causado pelas manchetes na mídia internacional ao noticiarem a farra da sambista e do príncipe em visita oficial ao Brasil. Ao final do encontro, Charles entregou à Pinah uma flâmula. Era um convite. Ela, curiosa, tratou logo de abri-la. Leu e, no mesmo instante, esfuziante anunciou: a Cinderela Negra vai à coroação de Charles III do Reino Unido.
Singrando mares, Pinah zarpou à coroação. Levou consigo a corte nilopolitana, e Iyá Kalá e Iyá Detá puderam novamente se juntar à Iyá Nassô. Partiram todos da região portuária da Pequena África, e não fizeram como Obatalá ao criar o mundo, pediram licença a Bará. Laroyê, Exu! Mojubá! Embarcados, sentiram em suas entranhas o banzo implacável provocado pelas dolorosas memórias de seus ancestrais. A maré sempre mareja o olhar. Mas, despojando-se do subjugo dos porões e da mácula dos tumbeiros, navegaram pelo azul do Atlântico guiados pelos resistentes braços de Olokun e intermediados por Iemanjá. Odoyá, rainha do mar! Deixaram as dores de lado e navegaram, até que perderam de vista o sinuoso perfil das montanhas cariocas se curvando no horizonte. Dessa vez, a imensidão da Calunga Grande não lhes seria hostil e tão pouco os levaria para um território incerto. Tinham destino e voltariam para os seus.
Charles é Coroado
Desembarcando em terras estrangeiras, Pinah e sua corte foram recebidos pela fidalguia inglesa. Rumo à coroação, desfilaram pelas velhas ruas londrinas. A corte nilopolitana ostentava a mesma nobreza que os reis e rainhas exibem em África. Estampados nos trajes da realeza de ébano, os exuberantes tecidos adinkra, do reino Ashanti, contrastavam com a sobriedade dos vestidos e fraques da monarquia britânica. Em direção à Abadia de Westminster,
acompanharam a guarda real pedindo passagem para o início da procissão. Em seguida, ouviram o repicar dos sinos nos campanários da Abadia e se dirigiram ao transepto do templo. Lá dentro, deslumbraram-se com a imponente arquitetura gótica do edifício e seus pináculos, dípticos, trípticos, abóbodas, rendilhados, ogivas, rosáceas e vitrais multicoloridos que arrebatavam o olhar. Quando os clarins soaram, perceberam que a coroação teria início. Nesse momento, viram o arcebispo da Cantuária e o clero anglicano atravessar o trifório sendo seguidos por pagens e damas de honra que carregavam o suntuoso manto majestático do rei e conduziam as joias da coroa britânica sob o pálio processional.
O ponto alto da viagem se aproximava. A corte nilopolitana estava êxtase. Foi quando Charles, no altar, assentado sobre o trono, depois de ter recebido as insígnias reais, ser ladeado pelos cetros do soberano e empunhar o orbe cerimonial, foi coroado pelo clero anglicano. Os clarins novamente soaram e os vitrais da abadia lançaram suas cores sobre o exato instante do rito, colorindo o interior do templo. Em seguida, Pinah e os seus puderam ouvir o forte som emitido pelo órgão de tubos se contrapondo ao doce canto das vozes do coro em uma melodia que parecia tocar os céus. A música era acompanhada por brados da corte inglesa, que saudava o novo monarca exclamando: “God Save the King!” (Deus salve o rei!). Seguindo a saudação e manifestando sua própria fé, a corte nilopolitana replicava: “Olorum salve o rei!”. Com isso, consumou-se a coroação de Charles III.
O Banquete do Rei
Posteriormente, seguiram todos para o Palácio de Buckingham. Lá dentro, ouvia-se o rumor popular que atravessava as frestas das janelas, dando conta de como era grande a multidão de londrinos aglomerados nos jardins. Esperavam que o rei surgisse acenando no balcão principal, como sempre ocorre após cerimônias de coroação. O ritual do beija mão corria e a corte inglesa estava reunida na Sala do Trono para reverenciar o monarca recém coroado. O rei, envolto pelo dossel do trono, fitava os convidados sentindo a falta de Pinah e sua corte. Todos criam que as comemorações oficiais tinham se encerrado na Abadia de Westminster, até que surgiram jocosos bufões em meio à nobreza. Os bobos da corte tinham uma missão: fazer o salão se encher de riso para distrair Charles, evitando que o rei fosse ao balcão. Conseguiram! O monarca se rendeu aos gracejos e esqueceu o protocolo que deveria cumprir.
Minutos depois, o emissário real, empunhando um pergaminho, atravessou a Sala do Trono e, suspendendo as cortinas que bloqueavam a visão do exterior, abriu as portas envidraçadas do salão, acessou o balcão principal e anunciou: “His Majesty The King Charles III of the United Kingdom invites: tonight we will celebrate Olubajé in the palace gardens” (Sua Majestade o Rei Charles III do Reino Unido convida: esta noite comemoraremos o Olubajé nos jardins do palácio). O anúncio surpreendeu a todos. Lá fora, populares vibravam em polvorosos com a notícia da noite de glória que experimentariam junto à corte. A nobreza, que ainda abarrotava a Sala do Trono, saia às pressas do palácio para providenciar trajes à altura da ocasião. Mas, afinal, o que era Olubajê? Ninguém sabia! Pensaram ser um novo costume, uma moda da realeza. Não se importaram com o termo. O rei, por sua vez, estava aflito. Não sabia de nada. Pinah, percebendo o estado de preocupação do anfitrião, aproximou-se dele e, sussurrando ao pé do ouvido, disse: “i did!” (fui eu!). Abraçaram-se, riram e deixaram o salão.
A corte nilopolitana guardava o motivo que pareceu não intrigar a nobreza: percebendo que a coroação ocorrera em agosto, lembraram-se que corria o mês do Olubajé, quando os terreiros de candomblé celebram o Banquete do Rei. Dados às refeições festivas, como sempre são os filhos de orixá, decidiram cumprir o ritual oferecendo o banquete a Charles e ao povo que os recebera em Londres. A surpresa que Pinah preparava para o rei era repleta de simbolismo: o Olubajé é a celebração em que Obaluaê, o Rei da Terra, convida seu séquito para comer e partilhar do fausto de seu reino. Este era o fundamento.
Para isso, consultaram o oráculo de Ifá, foram autorizados e receberam orientações: para que de modo comensal se reunissem e praticassem o Olubajé, deveriam se despir dos trajes reais que horas antes ostentavam, vestir-se de santo e plantar o axé sobre a área do jardim em que celebrariam o banquete, assentando ali o ibá de Obaluaê. Assim, toda força sagrada se revigoraria no ilê e a vida seria prolongada com saúde a todos que do rito participassem. E, para que reconstruíssem o aforismo inglês “Deus salve o Rei!” e sucedessem os preceitos de sua fé, a parentela mítica de Obaluaê deveria assumir as funções rituais que lhes foram designadas por Ifá. O mais velho yaô de Oxalá, o pai de Obaluaê, seria feito babalorixá. Outros seis yaôs de Oxumarê, um dos irmãos de Obaluaê, seriam feitos os alabês do Xirê e teriam a companhia de uma yaô de Nanã, a mãe de Obaluaê, que seria feita a olorin do batuque. Fora da parentela, três yaôs de Iansã seriam feitas ekedis para auxiliar a liturgia do ritual e as yabás de Oxum seriam feitas yabassês incumbidas de preparar o Sabejé e as comidas votivas do ebó. E assim fizeram: as orientações foram seguidas e o fundamento estava salvaguardado.
Enquanto o céu de Londres escurecia, abiãs penduravam rosários de deburu sobre o Arco do Almirantado para ornar o acesso aos jardins do palácio e reverenciar Obaluaê. Quando a noite enfim caiu, o tilintar do adjá do babalorixá de Oxalá anunciou que os portões da arcada estavam abertos ao povo. Ao atravessá-los, o sacerdote pediu passagem: “agô!”. Saudou o orixá: “atotô, Obaluaê!”. E anunciou: “o Banquete do Rei vai começar!”. Seguindo-o, surgiu o trio de ekedis filhas de Iansã carregando uma esteira, uma moringa de aluá e uma gamela repleta de folhas de ewê lará. A esteira serviria como mesa, o aluá como bebida sagrada e as folhas de ewê lará atuariam como pratos que receberiam os ebós do Olubajé. Em seguida, o grupo de yabassês de Oxum, vestidas à baiana, em branco alvíssimo e dourado, iniciou o Sabejé pela avenida adjacente ao Arco do Almirantado. Transportavam amplos cestos transbordando deburu para Obaluaê. O deburu era oferecido aos populares, que recebiam o grão e seguiam o cortejo saudando o orixá.
Logo atrás, outras onze yabassês seguiam o cortejo. Enfileiradas, conduziam panelas de barro ornadas com faixas votivas. Cada panela era dedicada ao ebó de um orixá: para Bará, padê de dendê; para Ogum, feijoada; para Oxóssi, axoxô; para Obaluaê, gugurú; para Ossaim, acaçá; para Oxumaré, aberém; para Oxum, omolocum; para Iansã, abará; para Nanã, mungunzá; para Iemanjá, dibô e para Oxalá, egbó. À medida que o cortejo avançava em direção à área do banquete, aqueles que chegavam ao ambiente se deparavam com a prevalência dos elementos característicos de Obaluaê ornamentando o jardim: o branco pontuava as bordaduras da topiaria, os búzios e a palha enfeitavam quartinhas e as flores de deburu ornavam faustosos candelabros dourados preenchidos com velas brancas.
No centro do jardim, para delimitar a mesa do banquete, estendeu-se sobre a terra a esteira que as abiãs de Iansã carregavam. Depois disso, as onze panelas de barro foram dispostas em círculo sobre a esteira pelas yabassês de Oxum escolhidas para preparar o ebó de
cada orixá. O aluá foi distribuído em copos de barro e as folhas de ewê lará foram entregues àqueles que comeriam do Olubajé. Foi quando desceram todos os orixás. Bará desceu primeiro. O mensageiro sempre inaugura o xirê. Depois vieram Ogum, Oxóssi, Ossaim, Oxumaré, Oxum, Iansã, Nanã e Iemanjá. Só não desceu Xangô! Por tradição, o Alafin de Oyó não celebra o Banquete do Rei da Terra. Nesse instante, as yabassês convidaram para comer: “ajeum!”. Convite aceito: “ajumbó!”.
À mesa, nobres em trajes de gala, com seus chapéus e medalhas, se lambuzavam e acenavam sinalizando que o ebó era bom. Queriam mais! Todos comiam, bebiam e firmavam ponto ritmado pelo batuque dos alabês de Oxumarê junto à olorin de Nanã, que cantava: “arayê ajeumbó, Olubajé ajeumbó. Olubajé ajeumbó, Olubajé ajeumbó ayê” (povo da terra, vamos comer e adorá-lo, o senhor convidou a comer). O canjerê atravessou a noite e o xirê dos orixás se transformou em um grande batuquejê.
O banquete já alcançava o amanhecer quando os primeiros raios de sol iluminaram o crepúsculo da manhã de 16 de agosto. Era dia de Obaluaê. A nitescência redobrada do astro- rei irradiava o fulgor de um brilho intenso. Era o brilho mitológico do orixá. A luz insistia em driblar a palha das vestes paramentais de Obaluaê, ofuscando a visão de quem no jardim se reunia para celebrá-lo. Naquele instante, ao fundo da grande mesa montada para a refeição, reluziram duas silhuetas sobre um pedestal. A multidão se ajuntou para observar as formas que ali emergiam. Era a derradeira surpresa de Pinah, que mandara instalar uma escultura no jardim.
Quando as silhuetas enfim se revelam por completo, todos que ali estavam puderam contemplar a recriação do padedê que Charles e Pinah protagonizaram ao dançarem juntos em 1978. O feito tinha transmutado da memória para ganhar contornos físicos eternizados nas formas que reproduziam o movimento de seus corpos bailando no dourado intenso do metal esculpindo o duo destacado no lusco-fusco daquela manhã. E foi assim que Pinah triunfou para construir seu castelo no imaginário coletivo londrino. A partir daquele dia, o Rei e a Cinderela Negra dançariam pela eternidade entre os verdejantes arbustos topiados do palácio, expectadores cativos da majestade de ébano da eterna baluarte nilopolitana que, além de encantar ao príncipe, encantou ao mundo com o esplendor de seu gingado.
Pesquisa, texto e desenvolvimento do enredo: Paulo Batista
*Nota: Pinah foi consultada, leu a sinopse e aprovou a divulgação do texto.*